Deus está nos detalhes

No sistema de ensino português valoriza-se tanto a componente teórica que muitas vezes temos dificuldades em distinguir uma licenciatura em Engenharia de uma licenciatura semelhante noutra universidade (por exemplo em Lisboa Engenharia Química no IST versus Química na UL). A meu ver o que distingue o Engenheiro é a sua experiência prática, quando a excelência da teoria se confronta com a dura realidade: atrito, perdas, ruído, interferência, vibrações, margens de tolerância…

É por isso que Engenhocas feitas em Lego, sejam para mover berlindes ou outro propósito estrambólico qualquer, podem tornar-se case studies. A aparente facilidade de levar um berlinde de um lado para o outro desfaz-se quando o tentamos fazer várias vezes: o  berlinde ressalta, entala-se, escorrega; as peças estremecem, oscilam, separam-se, gastam-se e por vezes partem-se; ao usarmos vários berlindes o mecanismo encrava ou entope. Mais cedo ou mais tarde temos o chão cheio de berlindes ou a nossa engenhoca desfeita. Às vezes, infelizmente, ambos.

As normas GBC requerem que cada Engenhoca consiga mover em média um berlinde por segundo. Parece pouco mas em circuito continuo, mesmo que com um único berlinde, são 3600 passagens ao fim de uma hora. Como nada é perfeito, é inevitável que no nosso mecanismo ocorram «fugas» pelo que algumas dessas passagens não terão sucesso: berlindes que saltam para fora do circuito ou ficam encravados em sítios reconditos do próprio mecanismo e nunca mais de lá saem.

Poderíamos então aceitar como razoável uma precisão de 99% ou seja perder-se apenas, em média, um berlinde a cada 100 passagens. Parece bom, não parece?

Bem, a 1 berlinde por segundo, 1% de fugas correspondem a 36 berlindes ao fim de uma hora. Num evento com 10 módulos em exibição durante 5 horas seriam 1800 berlindes extraviados, a maioria espalhada pelo chão da sala. Posto assim já não parece tão razoável…

Pondo a questão de outra maneira: as mesmas normas GBC determinam que cada módulo tenha a capacidade de receber até 30 berlindes de uma vez só (o que na prática resulta em ter uma caixa ou cesta à entrada com essa capacidade). Numa exibição seria portanto razoável, ao ligar os motores, começar-se com 30 berlindes. Com uma eficiência de 99% os 30 berlindes seriam «consumidos» em apenas 49 minutos e meio. Menos de uma hora de exibição! Já para uma eficiência de 99,9% teríamos 8h19m30s, mais ou menos um dia de exibição contínua.

Portanto ao desenhar um módulo GBC acabamos por nos sujeitar a uma norma adicional: cada módulo deve ter uma precisão mínima de 99,9%. Na gíria de Administração de Sistemas chamamos a isso «Três noves»: ao comprometermo-nos com um nível de serviço (SLA) dizemos que o nosso «sistema» apenas está indisponível 10 minutos por semana, menos de 9 horas por ano (não é de certeza o caso do meu banco online que todas as noites, depois das 23h, fica impossível de utilizar).

 

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